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quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Protocolo do percurso para conhecer Robert Wilson


Glauber Gonçalves de Abreu

Verdadeiramente, não conhecia Robert Wilson. Talvez por uma questão local de recorte do cânone, minha graduação em teatro não contemplou suas obras, sua trajetória e seus procedimentos criativos nas diversas aulas de história, teoria e interpretação. As impressões sobre o artista vinham de rápidas pinceladas em aulas de técnicas teatrais, pesquisas autônomas na internet, leituras, revista Bravo; impressões mais vinculadas à forma que ao processo. Teciam-se comentários acerca de um teatro frio, pouco vertiginoso, pouco dionisíaco – “que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela analogia da embriaguez” (NIETZSCHE, 2003: 30). Fragmentos de um Apolo exacerbado e desmedido, preso aos efeitos da forma. Foi com esse olhar que cheguei ao primeiro módulo da disciplina Encenações em Jogo: experimentos de criação e aprendizagem do teatro contemporâneo, cujo modelo estético posto em jogo inicialmente foi o criador Robert Wilson. Reitero a denominação de Wilson como criador por entender que seus domínios criativos colocam em questão – e em movimento – as fronteiras do que chamaríamos de teatro. O próprio conceito de “teatro pós-dramático”, elaborado por Hans-Thies Lehmann e presente em boa parte de nossas discussões em sala, apóia-se bastante nas obras de Wilson para se desenhar. O desejo de compreender conceitualmente e verbalizar a experiência deste novo teatro (LEHMANN, 2007: 22), tendo Wilson como um dos seus principais expoentes, é justamente o que mobiliza a busca deste conceito, que tenta dar conta das novas configurações formais e processuais do Teatro.

É curioso e me movimenta pensar efetivamente porque Bob foi incorporado ao cânone teatral. O filme-documentário a que assistimos, Absolute Wilson, deixa claro que Bob não inicia sua carreira artística exatamente como um artista de teatro. Vemos no filme que, quando de suas primeiras apresentações em Nova York, um jornal local do Texas (estado natal de Wilson) escreve que a arte, o cinema ou a arquitetura devem ter um lugar para ele. Me pergunto muito porque o teatro não fora citado e – mais do que isso – porque o teatro é quem havia expandido suas fronteiras, territórios e limites para fazer caber Bob? Não seria possível um novo cinema, de limites rompidos entre a tele presença e a presença real? Uma nova arte, mais viva, mais tridimensional, mais calorosa, em movimento, ao contrário da escultura estática? Uma nova dança, mais teatral (como Pina Bausch faria alguns anos mais tarde)? Uma arquitetura em trânsito? Como Bob chegaria ao teatro?

O contato com o filme foi fundamental para conhecer melhor o artista e seu processo de criação. A impressão fria que pairava sobre sua obra aos poucos se desintegrou em seus múltiplos sentidos e princípios criativos. O encontro com o outro transformou a maneira de fazer e pensar arte em  Bob Wilson. O silêncio, a ausência, o vazio, a dilatação do tempo são perspectivas de olhar sobre o mundo. Impossível não estabelecer relações entre esses procedimentos e seu encontro com crianças autistas, com Christopher Knowles ou com o surdo Raymond Andrews. A presença de seres humanos especiais e suas limitações de percepção parecem fazer Bob repensar o alcance da linguagem verbal – e da linguagem, propriamente – e levar ao palco espetáculos de enorme potência imagética, em que a palavra ocupa um outro lugar, fora da lógica textocêntrica.

A dimensão pós-dramática de seu trabalho fica clara pela incorporação dos diversos procedimentos que detectamos: descontinuidade de ação e da narrativa, coralidade, simultaneidade, musicalização da cena, dilatação do tempo, atmosfera onírica, disjunção entre gesto e música, “dramaturgia da luz”, presença de elementos visuais (linhas, formas, cores) na composição do espaço.  Como a disciplina possui caráter teórico-prático, após identificar os procedimentos, experimentamo-los. Na primeira experimentação, em formato de roteiro cênico ilustrado ou story board, essencialmente visual, parti de uma imagem descrita por GALIZIA (2005: 92) para ilustrar a ideia de teatro estático em uma mostra realizada em Paris na década de 1970:

As duas Cadeiras Vitorianas de madeira que faziam par também receberam um tratamento dramático especial: um conjunto de faróis dianteiros na extremidade do espaldar e nos quatro pés de cada cadeira e a fiação permanece descoberta, no chão. As cadeiras foram colocadas a uma distancia aproximada de trinta metros, uma diante da outra, sobre uma superfície semelhante a um espelho. A tensão existente entre as duas cadeiras transcendia, pelo menos até certo ponto, a vulnerabilidade da ilusão do significado.

 A tensão provocada pela iminência do movimento ou da ocupação presente nessa descrição me colocou em contato com o próprio estado do ser humano, sempre potencial, em constante devir. O que existe nesta imagem é “a possibilidade do teatro” (94), a possibilidade de que o ser humano se faça presente e, portanto, um novo conceito de ação. Este conceito marca também teatralidade presente no cotidiano. A presença, aqui, se dá pela ausência, como no centro da cidade aos domingos (que é pura possibilidade).

FIGURA 1. Primeira imagem do roteiro cênico inspirado em Bob Wilson.
FIGURA 2. Rua 25 de Março (SP) em potência.
Fonte: 
http://fotos.estadao.com.br/cidades-sao-paulo-vazia-regiao-da-rua-25-de-marco-durante-o-jogo-entre-brasil-e-portugal,galeria,,108545,,9,0.htm?pPosicaoFoto=38

FIGURA 3. Rua 25 de Março (SP) ocupada.
Fonte:
http://www.flickr.com/photos/f_prestes/2428341680/

Depois, fizemos as improvisações, os coros wilsonianos, trabalhando alguns dos procedimentos identificados em que um corifeu liderava a movimentação dos demais participantes. Para finalizar o módulo, criamos uma cena em grupo a partir dos roteiros cênicos individuais. Interessante perceber como o procedimento ressoa diferente se deixa de ser exclusivamente mental e passa pelo corpo como um todo. PUPO (2010: 12) já afirmaria que “o grande poder do teatro (...) está no fato de que só dentro dele que eu tenho condição de, corporalmente, assumir um mundo fictício”. Faço este protocolo após ter tido a oportunidade de experimentar com um grupo de alunos da educação à distancia esse jogo de citação cênica a partir de um espetáculo do Antunes Filho apresentado em Brasília. A experiência foi muito potente em termos didáticos e ampliou enormemente o tipo de relação que se estabeleceu com a obra e a compreensão de seus sentidos. A leitura que os estudantes fizeram do espetáculo se ampliou na dimensão simbólica e também no estabelecimento de vínculos pessoais com o trabalho. Como facilitador, o meu próprio olhar sobre o espetáculo foi redimensionado a partir das reverberações dos procedimentos de criação nos corpos dos alunos.

FIGURA 4. Estudante em jogo. Brasília, julho/2012.
O contato com outros materiais, especialmente trechos em DVD dos espetáculos, contribuiu enormemente para o conhecimento da obra do artista estudado e apontou a constituição de uma ferramenta muito potente, inclusive, para o professor de teatro da educação básica. Escrevo minha dissertação sobre formação de espectadores e conheço as dificuldades logísticas do acesso de estudantes a espetáculos de teatro. Por meio do registro do espetáculo em DVD foi possível identificar os princípios e procedimentos, a ocupação do espaço, a relação entre os atores, a utilização do tempo, a proposta sonora, o curso da narrativa. Interessante pensar os desdobramentos didáticos do registro filmado de uma peça. 

Posso dizer que admiro este criador como não fazia antes. Ou, pelo menos, que entendo melhor como ele se encaminha para suas obras e acho interessante como suas propostas abalaram o próprio conceito de teatro. Fico curioso e na expectativa para um possível encontro em que serei plateia ao vivo de uma obra de Wilson (ingressos esgotados para o Beckett no SESC Belenzinho).

REFERÊNCIAS

GALIZIA, Luiz Roberto. Os processos criativos de Robert Wilson. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac&Naify, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
PUPO, Maria Lúcia. Teatro e Educação Formal. In: CORADESQUI, Glauber (Org.). Teatro na Escola: experiências e olhares. Brasília: Fundação Athos Bulcão, 2010.



A ORDENAÇÃO DO CAOS


                                                       A ORDENAÇÃO DO CAOS
                                                                                                                  Por: Francis Wilker




Para começar pelo começo, acho importante dizer que a obra de Bob Wilson nunca tinha despertado meu interesse. Guardava para mim esse nome associado à ideia de elitismo, artificialidade, ostentação....Desse modo, a oportunidade de conhecer melhor o artista e sua obra na disciplina Encenações em Jogo foi uma rica oportunidade de aprender e rever preconceitos...a prova de que o conhecimento é o melhor antídoto contra o preconceito e a ignorância (aqui no sentido de falta de conhecimento mesmo).
De início a proposta do professor Marcos Bulhões em trabalharmos com Roteiros Cênicos se mostrou bastante instigante. Como diretor/encenador pouquíssimas vezes fiz uso dessa “ferramenta” de “planejamento” da encenação. Essa estratégia ao mesmo tempo ajudou a me aproximar do universo do artista que estava sendo estudado e também me fez pensar em outras possibilidades para o meu trabalho como encenador, uma vez que achei bastante produtiva a elaboração dos roteiros, tanto como estímulo criativo quanto como um modo possível de pensar a elaboração/estudo de uma encenação.
O estudo do documentário Absolute Wilson foi fundamental para ter uma noção da trajetória do artista: origem, formação, influências, características, etc. Nesse ponto me chamou a atenção dois aspectos principais:
1)      o interesse e o trabalho de Bob com crianças/pessoas com problemas mentais (seja em relação à fala, à cognição ou motora). O encontro com essas aparentes limitações parece ter sido o grande disparador que resultou em aspectos importantes de sua poética. Além disso, o próprio Wilson apresentava dificuldades de fala quando criança. É interessante pensar como a limitação age no trabalho artístico gerando novas respostas e modos de expressar o mundo. Pensar em procedimentos como disjunção entre gesto e fala; dilatação do tempo; formas de trabalhar um texto; narrativas não lineares, entre outros, ganham novo sentido após conhecer essa trajetória.
2)      As suas experiências formativas que envolvem as artes visuais, o happening, a dança, o teatro, a arquitetura. Isso ajuda a entender como Bob se posicionou logo de início numa zona de criação absolutamente híbrida.
O impacto dessas dimensões na sua poética pode ser exemplificado na descrição do seu trabalho apresentada no texto de introdução de uma entrevista com o encenador e, em seguida, com um trecho onde o próprio Bob fala de suas criações:

“Rejeitando as facetas mais conservadoras da prática do teatro, ao enfatizar a qualidade pictórica da composição de palco, suas peças do final dos anos 60 criaram uma fusão caleidoscópica de elementos de palco: camadas multiespaciais e temporais desdobrando-se em uma longa duração de tempo, e questionando a idolatria da palavra que dominou o teatro ocidental desde a Renascença.”[1]

“Para mim, é tudo ópera e é ópera no sentido latino da palavra, que significa trabalho: e isto significa algo. Eu escuto, é alguma coisa que eu vejo, é algo que eu cheiro. Isto inclui arquitetura, pintura, escultura e luzes: todas as artes estão na ópera. De uma certa maneira, todos os meus trabalhos são óperas , no sentido da palavra em latim, que significa “opus”.”[2]

Entre os parceiros recorrentes de Wilson destaca-se o músico e compositor Philip Glass que colaborou em diversas montagens. Veja uma das composições no link:

Depois de conhecer melhor aspectos do seu trabalho, assistir ao espetáculo A Última Gravação de Krapp, onde o próprio Bob Wilson está em cena, foi uma experiência diferenciada. Ali, me relacionando ao vivo com a matéria de sua arte, me chamou a atenção o apuro visual da cena, há uma preocupação singular com acabamento de cenários e objetos, sua distribuição no palco e a composição dessas visualidades de modo geral. Outro aspecto que impressiona é o modo como a iluminação se configura, há aqui uma precisão e ao mesmo tempo uma sutileza – como a passagem de tempo expressa pela luz que vaza da janela – a sensação é de que a luz é como um ator no espetáculo.
Por último, a experimentação prática dos principais procedimentos discutidos pela turma foi um terreno fértil de possibilidades. Interessante notar como em pouco tempo tantas imagens potentes foram criadas, experimentos simples a partir dos roteiros e que exploraram relações com o tempo, o espaço, elementos visuais...como pode ser visto no link abaixo que contém o registro das experimentações do grupo que integrei:

De modo geral, esses são os principais aspectos que me chamaram a atenção durante o módulo Bob Wilson. Seja no trabalho como professor e/ou encenador (em mim esses dois aspectos parecem não se separar) se mostrou estruturante analisar obras teatrais/encenadores procurando identificar procedimentos utilizados, discutir sobre os mesmos e em seguida experimentá-los e observar como se desdobram em outros corpos, com outras memórias, em outra cultura...


[1] Texto de apresentação da entrevista com Robert Wilson in HERITAGE, Paul; DELGADO Maria M. Diálogos no Palco. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A, 1999.
[2] Idem. Pág.535.
* Foto: montagem do autor e fotografia de Carmven.