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segunda-feira, 15 de julho de 2013

Protocolo Robert Wilson II

Por Evaldo Mocarzel

          O primeiro passo foi o exercício da escuta: todas as pessoas do meu grupo expuseram seus roteiros cênicos e as figuras que trouxeram da própria infância, essas últimas, em sua maioria, esboços gestualizados de “personagens” idosos que marcaram a vida de todos quando crianças: avô, avó e ainda um amigo da família muito carinhoso, mas que, por ser soropositivo, vivia a dualidade entre dar-se e, ao mesmo tempo, reprimir os próprios arroubos de afeto. 
          O segundo passo foi o exercício do desapego, uma prática necessária e vital nas criações coletivas através do chamado “processo colaborativo”, dispositivo muito recorrente entre os grupos de teatro de São Paulo. Nessa segunda etapa, descartamos as ideias que não eram exequíveis num exercício prático meteórico em sala de aula, com um tempo tão curto para a sua realização. Optamos pelo possível, mas também por tudo aquilo que tinha organicidade com o conceito do que seria experimentado: a criação de uma cena construída a partir da linguagem e do pensamento do encenador norte-americano Robert Wilson.
          É interessante comentar que de algum modo eu canalizei nessa experiência (e em outros exercícios dentro da mesma disciplina) uma longa vivência que tive documentando processos colaborativos de grupos como Teatro da Vertigem, Os Fofos Encenam, Companhia Livre, Os Satyros, Grupo XIX de Teatro, Teatro Kunyn e Companhia Estável, entre outros. Em alguns casos, também participei como dramaturgo, como no espetáculo “Kastelo” (Vertigem) e “Satyricon” (Satyros). Fiz um documentário sobre os 10 anos da Companhia Livre e passei seis semanas dentro do TUSP, onde o grupo reconstituiu todos os seus espetáculos através de leituras dramáticas. Entre os debates realizados, um deles focalizou justamente o processo colaborativo, do qual participaram nomes como os encenadores Antonio Araújo e Cibele Forjaz, e os dramaturgos Luís Alberto de Abreu e Fernando Bonassi. Toda essa experiência, como já disse, de algum modo tem desaguado na disciplina ministrada pelo professor Marcos Bulhões, sobretudo nos exercícios práticos que temos realizado ao longo do curso. Especificamente nessa prática voltada para o pensamento de Robert Wilson, toda essa vivência documental e dramatúrgica com os grupos antes mencionados veio à tona na minha cabeça quando estava buscando um caminho para a direção a partir das imagens e das figuras cênicas trazidas pelos meus colegas de grupo. 
          Como diretor, fui o primeiro a abandonar os roteiros cênicos que havia trazido e direcionei a experimentação lúdica o tempo todo com o olhar do dramaturgo que me habita. Alguém sugeriu que fossem realizados quatro solos, mas confesso que busquei uma espécie de “coralidade” entre os membros do meu grupo, pois acredito que o contracenar tem sempre muita potência cenicamente, embora aprecie solos, monólogos e solilóquios. 
          Na verdade, o ponto de partida de tudo, a protogênese do nosso processo foi uma camada que já decantou dentro de mim nesse curso ministrado pelo professor Marcos Bulhões: Pina Bausch. A grande coreógrafa e encenadora alemã pedia a seus bailarinos e bailarinas que improvisassem perguntas que ela elaborava para estimulá-los a improvisar sentimentos e sensações. Depois, Pina Bausch pinçava trechos de gestualidades e os ampliava com passos coreográficos que fazem parte da caligrafia física e ao mesmo tempo anímica da dança. De algum modo, esse método de trabalho da coreógrafa alemã me orientou a organizar os esboços gestuais das figuras cênicas trazidas pelas pessoas do meu grupo e ligadas à própria infância. 
          Em seguida, a busca pela atmosfera surreal das encenações de Robert Wilson para tentar plasmar e engendrar cenicamente as imagens trazidas pelos meus colegas de grupo. Uma delas não me saía da cabeça: gêmeas siamesas tomando um líquido em xícaras com movimentos lentos e repetidos. A partir dessa primeira imagem, vislumbrei uma narrativa: uma cena cotidiana numa cozinha, mas poeticamente estranhada à maneira de Robert Wilson, ou pelo menos inspirada na surrealidade de seus espetáculos. 
          Não demorei a conectar as gêmeas siamesas com a figura trazida pela bailarina e coreógrafa Célia Gouvêa, que fazia parte do meu grupo: uma estranha mulher trazendo em suas mãos colheres compridas, que ora eram utensílios de cozinha, ora se tornavam em suas mãos grampos para ajeitar o cabelo, logo em seguida, quando reunidas, também se transformavam num punhal.
          Após conectar a estranha mulher com as gêmeas siamesas, sugeri à quarta pessoa do meu grupo para interagir com a estranha “família”, num constante ir e vir de carinho e receptividade, mas também de apreensão e recuo. Tanto em Pina Bausch quanto em Robert Wilson, a repetição é um recorrente elemento de linguagem e uma possibilidade de estranhar poeticamente a cena, distanciando o espectador, mas logo envolvendo-o num ilusionismo com uma denegação toda especial. 
          Procurei trabalhar com repetições de ações muito lentas, como Robert Wilson dilata o tempo em cena, assim como jamais deixei de ter em mente um permanente contracenar entre as figuras cênicas, como já disse. Num determinado momento, todos se encontravam no proscênio e encarnavam pessoas idosas muito plásticas, com texturas surrealistas e ainda expressionistas. 
          As marcas e “deixas” foram surgindo naturalmente das próprias ações das figuras. Procurei me apropriar de determinados detalhes para promover deslocamentos e deflagrar novas ações, sempre em busca de algum tipo de “coralidade gestual” entre as figuras cênicas, na medida em que não trabalhamos com palavras nesse exercício prático, somente imagens e gestos alentados pela música de Philip Glass para a ópera “Einstein on the Beach”, com direção de Robert Wilson. 
          O resultado final do nosso exercício prático foi, como já comentei, um fragmento de cotidiano estranhado: algo bem trivial, comezinho, mas que está sempre a nos revelar a possibilidade de algum tipo de lampejo poético, com tintas surreais, na nossa rotina de vida, sobretudo nesses novos tempos digitais, em meio a toda essa virtualidade da “sociedade do espetáculo” que nos envolve e que tanto nos sufoca. 

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