Protocolo – Bob
Wilson
por Janaina Leite
por Janaina Leite
Gostaria então que
este texto pudesse ser ele a imagem do que se passa quando nos
deparamos com algo que começa a produzir a conhecimento em nós. Se
a orientação é a de uma escrita que conecta – e explode – seus
nexos em hiper links é porque o próprio saber se constrói em nós
dentro de uma rede, única, cuja impossibilidade de identificar todos
os pontos, a ordem, a causa e o efeito, o antes e o depois, os
porquês, tornam o próprio “saber sobre algo” uma experiência
que é em si produção de saber. E se um texto consegue fazer
transparecer não só o saber, mas a maneira pela qual ele este se
produziu, sua errância, seus pontos de crise, seus saltos, o desejo
que o moveu, isso sim, mais do que o “conteúdo”, pode ser algo
de significativo a ser partilhado.
Apesar de ser atriz
há pelo menos 15 anos, minha formação não é em teatro e, de
algum modo, estou me deparando agora com os “nomes dos bois” e os
próprios “bois”, já que o teatro, arte efêmera, produz um sem
número de obras que não nos chegariam se não fossem os registros,
os relatos, já que as obras em si já não existem em lugar nenhum.
Este preâmbulo é apenas para dizer que o encontro com novas-velhas
matérias do teatro, necessariamente, criam um turbilhão de
pensamentos, sentimentos, ideias, e então o objeto “Bob Wilson”
em si, é apenas UM dos elementos deste processo. Bonito seria
constituir uma espécie de mapa rizomático do
pensar de cada um de nós para que pudéssemos ver o
que acontece nestes encontros do desejo de saber com um
objeto-estímulo qualquer. Cada conhecimento é um. E ele nada tem a
ver com o mundo, mas é, sobretudo, imagemde si próprio.
Nunca achei “nada”
de Bob Wilson e sigo não achando muito mais que isso. Não tenho
nenhuma opinião, nem afinidade ou predileção específica. Não me
identifico, mas também não repudio. Mas ele passou a existir para
mim e essa existência, ou, essa existência específica dentro do
ambiente da aula, mas essa existência em si também, moveu alguns
interesses e algumas questões. Houve então encontro. E isso me
parece bom.
A primeira coisa que
anotei no meu caderno de aula, em letras grandes, foi a palavra
LINGUAGEM. Mas não era a linguagem de Bob Wilson, ou a
linguagem teatral, mas a própria linguagem, esta que estrutura opensamento - mas não só, estrutura a ação -, esta que define asrelações de tempo e espaço, esta na qual estamos imersos desde o dia em que nascemos – mesmo antes – e que criao mundo e mais, cria o próprio sujeito. Me encantou todo o mergulho
que Bob Wilson realizou em seu próprio processo de constituição da
linguagem e todos os desdobramentos que esta questão teve num
período significativo de sua obra como no trabalho realizado com Christopher Knowles. Neste sentido, a linguagem em Bob Wilson, não é aquela que
“veícula conteúdos”. Ela é em si mesma conteúdo ao testar-se
em territórios desconhecidos, ao revelar seu próprio processo
arbitrário e criativo em relação ao “mundo”. Trabalhar com
pessoas que apresentam o que entendemos como “disfunções”
revela na verdade o que é PRÓPRIO da linguagem, mas que em nós, os
“normais”, fica camuflado pelos regimes de verdade do nosso tempo
que direciona nosso trânsito entre signos e símbolos ao plano da
“troca de informações” no esquema
codificação-transmissão-decodificação. No entanto, flagar na
“disfunção”, no excesso, na irregularidade, o arbitrário e o
criativo é oferecer aos “normais” um campo de possibilidades
infinitas, pouco exploradas, que liberta o pensamento, a fala, o
corpo, as relações e toda a trama tecida pela linguagem. É assim,
um convite à criação, à liberdade, ao inesperado.
O segundo ponto que
me despertou real interesse foi o da autoria. Me parece que estamos
falando de uma obra que se constitui por uma assinatura clara. Ainda
que os anos 70 seja fortemente marcado por um desejo de quebrar ashierarquias e coletivizar os processos dentro do teatro, Bob
Wilson estabele uma trajetória clara dentro de um projeto autoral,
constituindo uma poética própria, muitas vezes fundada até numa
forte presença autobiográfica nos espetáculos através de um
mergulho nas próprias memórias e sonhos.
“Na medida em que
a função precípua do diretor não é mais a passagem do texto à
cena, o campo de experiência do próprio encenador se abre também
como material cênico. Suas memórias, histórias, pregressas e busca
de autodesenvolvimento são convocadas para a construção do
espetáculo. Na verdade, a vida pessoal do encenador já se encontra,
desde o momento da escolha dos projetos, determinando os critérios
de seleção. Portanto, a encenação passa a ser, em certa medida, a
encarnação, a “mise en chair” do diretor”. (A encenação performativa, Araújo,
p.254)
Me intriga,
particularmente, a questão de que o teatro poucas vezes consiga se
constituir como uma quadro em artes plásticas, como uma música, ou
como um poema ou um romance na literatura. A conquista da
“coletivização” pode às vezes gerar um efeito perverso que é
o da “média”. A média dos desejos, a média dos quereres, a
média das ideias, quando não um excesso de racionalização pela
necessidade de convencer, de explicar, de argumentar. E o teatro
atual, o de São Paulo ao menos, ao meu ver, presta contas demais aos
próprios projetos que escreve para ganhar editais! E os espetáculos
são, muitas vezes, a “ilustração” de seus “objetivos e
justificativas”. Se pensamos em encenadores como Bob Wilson, vislumbramos a possibilidade de um teatro que
não é a ilustração de uma tese, mas sim a engrenagem, a mise
en matière, a forma indissóciável de seu discurso, ou a forma
que é, ela mesma,
discurso! E ao meu ver, apenas quando a forma é o discurso é que
uma verdadeira poética se constitui.
Por último, acho
que o que mais retornou e retornou ao longo desse encontro com Bob
Wilson, foi justamente o pensamento sobre essa relação
forma-discurso na constituição de poéticas. Falamos muito sobre os
procedimentos dos encenadores, os identificamos, os nomeamos, nos
apropriamos deles, imaginariamente nos roteiros, depois praticamente
nos exercícios. No entanto, em nossa última avaliação dessa fase
“Bob Wilson”, olhamos para esses resultados e nos perguntamos o
que, para além de sua função didática no processo de aprenssão
de nosso objeto, eles eram no “caminho arte”. O que define uma obra de arte? Como podemos diferenciar um exercício de uma obra?
Porque aqueles exercícios não são uma obra? Falamos do urinol de Duchamp e do próprio questionamento sobre o que é arte. Mas
não somos nós quem fazemos a pergunta ao ver o urinol de Duchamp.
Esta pergunta está formulada no próprio ato de colocar o urinol no
museu. Ou seja, para que o urinol fosse arte, diferentemente de um
recipiente de lixo na entrada do museu ou de um maço de cigarros
caído do bolso de um visitante, ele não pôde estar separado de sua
pergunta! Ele é, não mais um exercício virtuoso de técnica,
equilíbrio, cores, formas, luz e sombra, harmonia e beleza,
mas um conceito
operando
em forma de urinol.
Se colocarmos nas
mãos de uma criança tinta e pincéis, certamente ela saberá
“compor” imagens a partir de cores e formas. Mas por que esta
pintura não será arte? Porque o objeto-arte é o resultado de uma
poética e esta só se constitui por um complexo de desejos, gestos,
conexões, encontros, crises, atitude, processos. Um traço amarelo não será o mesmo em
diferentes artistas. E não o será porque numa obra de arte ele já
não é mais um traço amarelo, será “angústia” em um, será
afronta em outro, graça ali, casual aqui, desejo de forma pura,
afirmação, negação, procura. Mas ele não "significa", ele "é".Ou seja, como nos diz Sartre, "o amarelo é a própria angústia feita coisa, assim com uma melodia triste é a própria tristeza materializada". Um traço amarelo é então ao
mesmo tempo o tudo e o nada da obra de arte. Penso então que em
igual medida, os “procedimentos” que estamos identificando nos
espetáculos são também esse tudo e esse nada. Só podem se revelar
plenamente à luz destes projetos
estéticos-políticos-existenciais nos quais estão engajados
os artistas.
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