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domingo, 6 de maio de 2012


Protocolo – Bob Wilson 
por Janaina Leite

Gostaria então que este texto pudesse ser ele a imagem do que se passa quando nos deparamos com algo que começa a produzir a conhecimento em nós. Se a orientação é a de uma escrita que conecta – e explode – seus nexos em hiper links é porque o próprio saber se constrói em nós dentro de uma rede, única, cuja impossibilidade de identificar todos os pontos, a ordem, a causa e o efeito, o antes e o depois, os porquês, tornam o próprio “saber sobre algo” uma experiência que é em si produção de saber. E se um texto consegue fazer transparecer não só o saber, mas a maneira pela qual ele este se produziu, sua errância, seus pontos de crise, seus saltos, o desejo que o moveu, isso sim, mais do que o “conteúdo”, pode ser algo de significativo a ser partilhado.
Apesar de ser atriz há pelo menos 15 anos, minha formação não é em teatro e, de algum modo, estou me deparando agora com os “nomes dos bois” e os próprios “bois”, já que o teatro, arte efêmera, produz um sem número de obras que não nos chegariam se não fossem os registros, os relatos, já que as obras em si já não existem em lugar nenhum. Este preâmbulo é apenas para dizer que o encontro com novas-velhas matérias do teatro, necessariamente, criam um turbilhão de pensamentos, sentimentos, ideias, e então o objeto “Bob Wilson” em si, é apenas UM dos elementos deste processo. Bonito seria constituir uma espécie de mapa rizomático do pensar de cada um de nós para que pudéssemos ver o que acontece nestes encontros do desejo de saber com um objeto-estímulo qualquer. Cada conhecimento é um. E ele nada tem a ver com o mundo, mas é, sobretudo, imagemde si próprio.
Nunca achei “nada” de Bob Wilson e sigo não achando muito mais que isso. Não tenho nenhuma opinião, nem afinidade ou predileção específica. Não me identifico, mas também não repudio. Mas ele passou a existir para mim e essa existência, ou, essa existência específica dentro do ambiente da aula, mas essa existência em si também, moveu alguns interesses e algumas questões. Houve então encontro. E isso me parece bom.
A primeira coisa que anotei no meu caderno de aula, em letras grandes, foi a palavra LINGUAGEM. Mas não era a linguagem de Bob Wilson, ou a linguagem teatral, mas a própria linguagem, esta que estrutura opensamento - mas não só, estrutura a ação -, esta que define asrelações de tempo e espaço, esta na qual estamos imersos desde o dia em que nascemos – mesmo antes – e que criao mundo e mais, cria o próprio sujeito. Me encantou todo o mergulho que Bob Wilson realizou em seu próprio processo de constituição da linguagem e todos os desdobramentos que esta questão teve num período significativo de sua obra como no trabalho realizado com Christopher Knowles. Neste sentido, a linguagem em Bob Wilson, não é aquela que “veícula conteúdos”. Ela é em si mesma conteúdo ao testar-se em territórios desconhecidos, ao revelar seu próprio processo arbitrário e criativo em relação ao “mundo”. Trabalhar com pessoas que apresentam o que entendemos como “disfunções” revela na verdade o que é PRÓPRIO da linguagem, mas que em nós, os “normais”, fica camuflado pelos regimes de verdade do nosso tempo que direciona nosso trânsito entre signos e símbolos ao plano da “troca de informações” no esquema codificação-transmissão-decodificação. No entanto, flagar na “disfunção”, no excesso, na irregularidade, o arbitrário e o criativo é oferecer aos “normais” um campo de possibilidades infinitas, pouco exploradas, que liberta o pensamento, a fala, o corpo, as relações e toda a trama tecida pela linguagem. É assim, um convite à criação, à liberdade, ao inesperado.
O segundo ponto que me despertou real interesse foi o da autoria. Me parece que estamos falando de uma obra que se constitui por uma assinatura clara. Ainda que os anos 70 seja fortemente marcado por um desejo de quebrar ashierarquias e coletivizar os processos dentro do teatro, Bob Wilson estabele uma trajetória clara dentro de um projeto autoral, constituindo uma poética própria, muitas vezes fundada até numa forte presença autobiográfica nos espetáculos através de um mergulho nas próprias memórias e sonhos.

Na medida em que a função precípua do diretor não é mais a passagem do texto à cena, o campo de experiência do próprio encenador se abre também como material cênico. Suas memórias, histórias, pregressas e busca de autodesenvolvimento são convocadas para a construção do espetáculo. Na verdade, a vida pessoal do encenador já se encontra, desde o momento da escolha dos projetos, determinando os critérios de seleção. Portanto, a encenação passa a ser, em certa medida, a encarnação, a “mise en chair” do diretor”. (A encenação performativa, Araújo, p.254)

Me intriga, particularmente, a questão de que o teatro poucas vezes consiga se constituir como uma quadro em artes plásticas, como uma música, ou como um poema ou um romance na literatura. A conquista da “coletivização” pode às vezes gerar um efeito perverso que é o da “média”. A média dos desejos, a média dos quereres, a média das ideias, quando não um excesso de racionalização pela necessidade de convencer, de explicar, de argumentar. E o teatro atual, o de São Paulo ao menos, ao meu ver, presta contas demais aos próprios projetos que escreve para ganhar editais! E os espetáculos são, muitas vezes, a “ilustração” de seus “objetivos e justificativas”. Se pensamos em encenadores como Bob Wilson, vislumbramos a possibilidade de um teatro que não é a ilustração de uma tese, mas sim a engrenagem, a mise en matière, a forma indissóciável de seu discurso, ou a forma que é, ela mesma, discurso! E ao meu ver, apenas quando a forma é o discurso é que uma verdadeira poética se constitui.
Por último, acho que o que mais retornou e retornou ao longo desse encontro com Bob Wilson, foi justamente o pensamento sobre essa relação forma-discurso na constituição de poéticas. Falamos muito sobre os procedimentos dos encenadores, os identificamos, os nomeamos, nos apropriamos deles, imaginariamente nos roteiros, depois praticamente nos exercícios. No entanto, em nossa última avaliação dessa fase “Bob Wilson”, olhamos para esses resultados e nos perguntamos o que, para além de sua função didática no processo de aprenssão de nosso objeto, eles eram no “caminho arte”. O que define uma obra de arte? Como podemos diferenciar um exercício de uma obra? Porque aqueles exercícios não são uma obra? Falamos do urinol de Duchamp e do próprio questionamento sobre o que é arte. Mas não somos nós quem fazemos a pergunta ao ver o urinol de Duchamp. Esta pergunta está formulada no próprio ato de colocar o urinol no museu. Ou seja, para que o urinol fosse arte, diferentemente de um recipiente de lixo na entrada do museu ou de um maço de cigarros caído do bolso de um visitante, ele não pôde estar separado de sua pergunta! Ele é, não mais um exercício virtuoso de técnica, equilíbrio, cores, formas, luz e sombra, harmonia e beleza, mas um conceito operando em forma de urinol.
Se colocarmos nas mãos de uma criança tinta e pincéis, certamente ela saberá “compor” imagens a partir de cores e formas. Mas por que esta pintura não será arte? Porque o objeto-arte é o resultado de uma poética e esta só se constitui por um complexo de desejos, gestos, conexões, encontros, crises, atitude, processos. Um traço amarelo não será o mesmo em diferentes artistas. E não o será porque numa obra de arte ele já não é mais um traço amarelo, será “angústia” em um, será afronta em outro, graça ali, casual aqui, desejo de forma pura, afirmação, negação, procura. Mas ele não "significa", ele "é".Ou seja, como nos diz Sartre, "o amarelo é a própria angústia feita coisa, assim com uma melodia triste é a própria tristeza materializada"Um traço amarelo é então ao mesmo tempo o tudo e o nada da obra de arte. Penso então que em igual medida, os “procedimentos” que estamos identificando nos espetáculos são também esse tudo e esse nada. Só podem se revelar plenamente à luz destes projetos estéticos-políticos-existenciais nos quais estão engajados os artistas.





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