“Eu sinto que a minha responsabilidade como
artista não é dizer o que algo significa, mas perguntar o que é”. (WILSON apud
GALIZIA, 1986, p. 537)
No
processo de criação e aprendizagem teatral proposto por Marcos Bulhões na
disciplina de pós-graduação da Escola de Comunicação e Artes, da Universidade
de São Paulo, o ator-educador-pesquisador, na situação de aprendiz, trabalha
com princípios fundamentais da obra de encenadores e coreógrafos, de destaque
nas artes cênicas da atualidade.
Acupuntura
Poética mapeia pontos-pessoas-princípios em uma rede artística, na qual o
estímulo desses pontos-princípios proporciona uma aprendizagem teatral com
abertura para possibilidades de criação cênica, com ampliação de repertório e das
funções criativas do aprendiz.
Nas
atividades propostas para a turma de 2012, o primeiro ponto da rede, mapeada
por Bulhões, foi o encenador norte-americano Robert Wilson. Diante da escolha,
para a compreensão dos princípios observáveis em suas encenações, partimos para
apreciação de suas obras, através da exibição de filmes, vídeos e documentário,
leituras de textos sobre o encenador e exercícios práticos. Desta forma, entramos em contato com o encenador sob o viés
da apreciação, contextualização e produção.
Essa abordagem, cujo procedimento de
aprendizagem tem inspiração na estética do modelo, num exercício de teoria e
prática, é também chamada, por Bulhões, de antropofágica, no instante em que
pressupõe o ato de “comer” uma parte, ou várias partes da obra do encenador.
“Só a Antropofagia
nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo.
Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De
todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos
Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” (ANDRADE, 1928)
O
ato de “comer” é um mergulho pessoal, cuja imersão pode ocorrer nas profundezas
ou nas superfícies das partes daquele que se faz “comestível”. Dependendo da
experiência dos “mergulhadores” retira-se, no retorno do ato, aquilo que passa
a ser incorporado aos roteiros de experimentações, enquanto exercício proposto
nas aulas de “Encenações em Jogo”.
Após
apresentação expositiva do processo-aprendizagem da disciplina e da proposta da
Acupuntura Poética, partimos para o estudo de pontos-princípios do encenador
Robert Wilson, através: da apreciação do documentário “Absolute Wilson”, dirigido
por Katharina Otto-Bernstein
e da obra “Fábulas de La Fontaine”, com elenco da
Comedie Française; da leitura do
livro “Processos Criativos de Robert Wilson”, de Luiz Roberto Galizia; de
experimentações com jogos a partir de imagens corporais, dança livre, exercício
de coralidade e criação de roteiros.
Neste
escrito, falo acerca do viés da produção na qual os participantes experimentam a
criação de roteiro cênico composto por três a cinco quadros, tendo como
referência pontos-princípios da obra do encenador. Para Bob Wilson “a concepção
de roteiro nasce da construção visual como um todo e não de uma parte que deve
ser ampliada e desenvolvida”. (GALIZIA, 1986, p. 131)
Como
questão motivadora para a realização do esboço dos roteiros enquanto exercício
de teoria e prática eu tomo para o trabalho a questão sugerida por Bulhões: “quais
os procedimentos de escritura cênica são utilizados nas suas encenações?”
A construção visual tornou-se então um desses
procedimentos que motivou o esboço do primeiro roteiro à la Bob Wilson. A questão motivadora torna-se, assim, a mobilizadora
das ações investigativas em torno da estética do modelo, proposto na Acupuntura
Poética, cujo objetivo engloba a fisicalização do conceito. Fisicalização, que
segundo Spolin (1998, p. 340), “é a manifestação física de uma comunicação; a
expressão física de uma atitude.”
Na
investigação dos procedimentos da escritura cênica utilizados nas encenações de
Bob Wilson, ganharam destaque, no ato antropofágico: imagens como geradoras de
cenas e quadros para os roteiros; a teatralidade do vazio; uso da repetição; da
justaposição, aqui considerado como outro conceito de unidade, que se difere de
sucessão e transição; arquitetura visual; cenas simultâneas, nas quais são
sugeridos vários pontos focais para a plateia; uso de recursos de distanciamento;
predominância do tempo dilatado, cuja extensão e alargamento “estica o tempo de
contato do espectador com a informação” (GALIZIA, 1986, p. 17); artificialidade
do gesto e musicalidade da fala; ação cenográfica; coralidade; suspensão do movimento
e estatismo; disjunção; resposta aos estímulos sonoros e visuais.
Na
obra de Bob Wilson, ao mesmo tempo em que há uma ordem e um limite de tempo,
pois tudo o que acontece em cena é registrado de acordo com a duração do tempo,
há, segundo Galizia (1986, p. xxiii) “o uso do acaso e da improvisação como
meios para atingir resultados artísticos”, tendo como finalidade o estímulo das
capacidades intuitivas do espectador.
Para
a criação do Roteiro à la Bob Wilson nas aulas de “Encenações em Jogo”, os
conteúdos sonoros e visuais foram criados a partir de uma estrutura vazia, na
concepção de “linha visual” do encenador, na qual, dentro de uma estrutura cria-se
um conteúdo que torna visível o Tempo e o Espaço. Concebido assim, como um “libreto visual e
sonoro” (SALGADO, 2010), o enredo “torna-se ações, entradas e gestos” partindo
de uma “construção visual como um todo” (GALIZIA, 1986, p. 131).
“É
excitante, pois tem uma vida que parecer vir diretamente da natureza, sem
explicações (...). Muito pouco é predeterminado. Tem uma ordem um limite de
tempo, claro, talvez um certo esboço, mas o que acontecer, acontece” (GALIZIA,
1986, p. xxvii)
Na
abordagem metodológica de criação de roteiros como procedimento de aprendizagem
teatral na disciplina da pós-graduação, Marcos Bulhões propõe a execução de
três roteiros individuais, que culminou com a criação coletiva de um quarto
roteiro, este apresentado na forma cênica num exercício de fisicalização do
conceito, com saldo positivo para uma abordagem teórico-prática.
A
criação de esboço, com desenhos-formas, entradas-saídas e ações-gestos,
transcrito no papel, compondo roteiros à la Bob Wilson, era feito
simultaneamente no decorrer das aulas, num exercício domiciliar e individual.
O primeiro roteiro foi concebido antes do
contato antropofágico; o segundo, a partir de pontos-princípios possíveis de
serem visualizados e “comidos” nas obras do “modelo”; o terceiro roteiro,
desenvolvido a partir de uma imagem e, por fim, o quarto roteiro, que foi construído
de forma colaborativa, cuja autoria foi compartilhada, através da junção de
imagens coletadas dos diversos roteiros do grupo composto por oito
participantes-aprendizes.
Teatro
como “um arranjo arquitetônico no tempo e no espaço” (GALIZIA, 1986, p. 540).
Esse foi o pressuposto para o esboço do Roteiro 2. Um espaço vazio cujas formas
iam compondo visualmente e sonoramente criando um arranjo “arquitetônico no
tempo e no espaço”, aludindo cenas e imagens de obras de Bob Wilson.
No
esboço do roteiro 2, uma formalidade: a duração das cenas teriam exatamente 15
min. cada e as indicações para cada uma delas não passariam de entradas e
ações. Na criação, entraram em jogo alguns pontos-princípios: a musicalidade na
composição das ações; sobreposição de gestos e vozes; dança-canto; suspensão de
movimentos; extensão e aceleração do tempo.
No
esboço 3 de roteiro à la Bob Wilson, a instrução era partir de uma imagem
provocadora. Descrevo o encontro com a imagem motivadora do meu esboço: - Ao
sair do Teatro Laboratório da Escola de Comunicação e Artes observei uma estudante
sentada na cadeira ladeada por duas amigas que lhe faziam tranças.
Aquela imagem grudou em mim e motivou o esboço do Roteiro três. Em minha percepção, reminiscências de estudos da narrativa no meio artesão, do mito de Ulisses e deusa Circe, a imagem da Circe tecelã.
No
"Exercício do Sim”, a autoria compartilhada do Roteiro 4, contou com imagens
poéticas de todos os participantes do grupo, buscando responder às necessidades
de cada um com apresentação de ações sucessivas, sobrepostas e simultâneas: uma
alusão ao poema Rondó dos Cavalinhos de Manuel Bandeira; à beleza e carnificina -
frigorífico; criança na praia fazendo castelo de areia; homem fazendo a barba;
mulher sendo trançada. Dessa junção de imagens colocamos no espaço vazio formas
e corpos numa organização do espaço-tempo guiados pela canção Bombé. Ruhtwohl, ihr heiligen Gebeine, do audio Lambarena: Bach para Africa (1995).
Repetição....
Suspensão e Extensão da Ação.... Sobreposição.... Imagens que suscitam... Estímulos
sonoros e visuais... Sensações...
Na
função de direção do exercício, busquei compor o espaço e o tempo com as
imagens de todos os participantes, numa construção visual do espaço, numa
articulação LUZ-SOM-AÇÃO, onde a luz ensina a ver e a escutar e onde o ritmo é
marcado com movimentos numerados conforme a duração do tempo sonoro, que se
propaga na cena.
O
resultado foram imagens provocadoras que podem vir a suscitar sensações, pois
como afirma Bob Wilson (apud SALGADO, 2010):
“A
verdadeira ação do meu teatro é a que passa no cérebro de meus espectadores
(...). Eu lhes dou sinais impessoais, cada um inventa depois segundo sua
imaginação. Deixa fluir em seu cérebro seus pensamentos que lhes são próprios.
Não sugiro nada (...) para que saiam do adormecimento, para que sigam vendo em
suas casas.”
Para
ver e ouvir o exercício será necessário “tirar os óculos dramáticos”,
utilizando aqui a expressão utilizada por Bulhões, para apreciação de obras que
nos oferecem imagens, às vezes sem significação, e que dá ao espectador uma
sensação de descontinuidade e que, dependendo dos óculos, pode vim a ser um
exercício de sensibilidade.
Bibliografia:
ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed.. Petrópolis: Vozes: Brasília:INL,1976.
GALIZIA,
Luiz Roberto. Processos Criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva,
1986.
SALGADO,
Carmen Prado. “Contrapontos de luz e som no teatro de Bob
Wilson”. (palestra) In: DVD Ciclo Paralelo: Silêncios e Sussurros. Realização:
Fundação Vera Sales Barcelos, em 11/09/2010.
SPOLIN, VIOLA. Improvisação para o Teatro. São
Paulo: Perspectiva, 1998.
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