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terça-feira, 8 de maio de 2012

ROTEIRO, UMA CONSTRUÇÃO VISUAL NO ESPAÇO VAZIO, POR GISELE VASCONCELOS.

 “Eu sinto que a minha responsabilidade como artista não é dizer o que algo significa, mas perguntar o que é”. (WILSON apud GALIZIA, 1986, p. 537)

No processo de criação e aprendizagem teatral proposto por Marcos Bulhões na disciplina de pós-graduação da Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo, o ator-educador-pesquisador, na situação de aprendiz, trabalha com princípios fundamentais da obra de encenadores e coreógrafos, de destaque nas artes cênicas da atualidade.
Acupuntura Poética mapeia pontos-pessoas-princípios em uma rede artística, na qual o estímulo desses pontos-princípios proporciona uma aprendizagem teatral com abertura para possibilidades de criação cênica, com ampliação de repertório e das funções criativas do aprendiz.

Nas atividades propostas para a turma de 2012, o primeiro ponto da rede, mapeada por Bulhões, foi o encenador norte-americano Robert Wilson. Diante da escolha, para a compreensão dos princípios observáveis em suas encenações, partimos para apreciação de suas obras, através da exibição de filmes, vídeos e documentário, leituras de textos sobre o encenador e exercícios práticos. Desta forma, entramos em contato com o encenador sob o viés da apreciação, contextualização e produção.
Essa abordagem, cujo procedimento de aprendizagem tem inspiração na estética do modelo, num exercício de teoria e prática, é também chamada, por Bulhões, de antropofágica, no instante em que pressupõe o ato de “comer” uma parte, ou várias partes da obra do encenador.

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” (ANDRADE, 1928)
O ato de “comer” é um mergulho pessoal, cuja imersão pode ocorrer nas profundezas ou nas superfícies das partes daquele que se faz “comestível”. Dependendo da experiência dos “mergulhadores” retira-se, no retorno do ato, aquilo que passa a ser incorporado aos roteiros de experimentações, enquanto exercício proposto nas aulas de “Encenações em Jogo”.

Após apresentação expositiva do processo-aprendizagem da disciplina e da proposta da Acupuntura Poética, partimos para o estudo de pontos-princípios do encenador Robert Wilson, através: da apreciação do documentário “Absolute Wilson”, dirigido por Katharina Otto-Bernstein e da obra “Fábulas de La Fontaine”, com elenco da Comedie Française; da leitura do livro “Processos Criativos de Robert Wilson”, de Luiz Roberto Galizia; de experimentações com jogos a partir de imagens corporais, dança livre, exercício de coralidade e criação de roteiros.
Neste escrito, falo acerca do viés da produção na qual os participantes experimentam a criação de roteiro cênico composto por três a cinco quadros, tendo como referência pontos-princípios da obra do encenador. Para Bob Wilson “a concepção de roteiro nasce da construção visual como um todo e não de uma parte que deve ser ampliada e desenvolvida”. (GALIZIA, 1986, p. 131)
Como questão motivadora para a realização do esboço dos roteiros enquanto exercício de teoria e prática eu tomo para o trabalho a questão sugerida por Bulhões: “quais os procedimentos de escritura cênica são utilizados nas suas encenações?”
A construção visual tornou-se então um desses procedimentos que motivou o esboço do primeiro roteiro à la Bob Wilson. A questão motivadora torna-se, assim, a mobilizadora das ações investigativas em torno da estética do modelo, proposto na Acupuntura Poética, cujo objetivo engloba a fisicalização do conceito. Fisicalização, que segundo Spolin (1998, p. 340), “é a manifestação física de uma comunicação; a expressão física de uma atitude.”
Na investigação dos procedimentos da escritura cênica utilizados nas encenações de Bob Wilson, ganharam destaque, no ato antropofágico: imagens como geradoras de cenas e quadros para os roteiros; a teatralidade do vazio; uso da repetição; da justaposição, aqui considerado como outro conceito de unidade, que se difere de sucessão e transição; arquitetura visual; cenas simultâneas, nas quais são sugeridos vários pontos focais para a plateia; uso de recursos de distanciamento; predominância do tempo dilatado, cuja extensão e alargamento “estica o tempo de contato do espectador com a informação” (GALIZIA, 1986, p. 17); artificialidade do gesto e musicalidade da fala; ação cenográfica; coralidade; suspensão do movimento e estatismo; disjunção; resposta aos estímulos sonoros e visuais.
Na obra de Bob Wilson, ao mesmo tempo em que há uma ordem e um limite de tempo, pois tudo o que acontece em cena é registrado de acordo com a duração do tempo, há, segundo Galizia (1986, p. xxiii) “o uso do acaso e da improvisação como meios para atingir resultados artísticos”, tendo como finalidade o estímulo das capacidades intuitivas do espectador.
Para a criação do Roteiro à la Bob Wilson nas aulas de “Encenações em Jogo”, os conteúdos sonoros e visuais foram criados a partir de uma estrutura vazia, na concepção de “linha visual” do encenador, na qual, dentro de uma estrutura cria-se um conteúdo que torna visível o Tempo e o Espaço.  Concebido assim, como um “libreto visual e sonoro” (SALGADO, 2010), o enredo “torna-se ações, entradas e gestos” partindo de uma “construção visual como um todo” (GALIZIA, 1986, p. 131).
“É excitante, pois tem uma vida que parecer vir diretamente da natureza, sem explicações (...). Muito pouco é predeterminado. Tem uma ordem um limite de tempo, claro, talvez um certo esboço, mas o que acontecer, acontece” (GALIZIA, 1986, p. xxvii)
Na abordagem metodológica de criação de roteiros como procedimento de aprendizagem teatral na disciplina da pós-graduação, Marcos Bulhões propõe a execução de três roteiros individuais, que culminou com a criação coletiva de um quarto roteiro, este apresentado na forma cênica num exercício de fisicalização do conceito, com saldo positivo para uma abordagem teórico-prática.
A criação de esboço, com desenhos-formas, entradas-saídas e ações-gestos, transcrito no papel, compondo roteiros à la Bob Wilson, era feito simultaneamente no decorrer das aulas, num exercício domiciliar e individual.
O primeiro roteiro foi concebido antes do contato antropofágico; o segundo, a partir de pontos-princípios possíveis de serem visualizados e “comidos” nas obras do “modelo”; o terceiro roteiro, desenvolvido a partir de uma imagem e, por fim, o quarto roteiro, que foi construído de forma colaborativa, cuja autoria foi compartilhada, através da junção de imagens coletadas dos diversos roteiros do grupo composto por oito participantes-aprendizes.
Teatro como “um arranjo arquitetônico no tempo e no espaço” (GALIZIA, 1986, p. 540). Esse foi o pressuposto para o esboço do Roteiro 2. Um espaço vazio cujas formas iam compondo visualmente e sonoramente criando um arranjo “arquitetônico no tempo e no espaço”, aludindo cenas e imagens de obras de Bob Wilson.
No esboço do roteiro 2, uma formalidade: a duração das cenas teriam exatamente 15 min. cada e as indicações para cada uma delas não passariam de entradas e ações. Na criação, entraram em jogo alguns pontos-princípios: a musicalidade na composição das ações; sobreposição de gestos e vozes; dança-canto; suspensão de movimentos; extensão e aceleração do tempo.
No esboço 3 de roteiro à la Bob Wilson, a instrução era partir de uma imagem provocadora. Descrevo o encontro com a imagem motivadora do meu esboço: - Ao sair do Teatro Laboratório da Escola de Comunicação e Artes observei uma estudante sentada na cadeira ladeada por duas amigas que lhe faziam tranças.
Aquela imagem grudou em mim e motivou o esboço do Roteiro três. Em minha percepção, reminiscências de estudos da narrativa no meio artesão, do mito de Ulisses e deusa Circe, a imagem da Circe tecelã.
No "Exercício do Sim”, a autoria compartilhada do Roteiro 4, contou com imagens poéticas de todos os participantes do grupo, buscando responder às necessidades de cada um com apresentação de ações sucessivas, sobrepostas e simultâneas: uma alusão ao poema Rondó dos Cavalinhos de Manuel Bandeira; à beleza e carnificina - frigorífico; criança na praia fazendo castelo de areia; homem fazendo a barba; mulher sendo trançada. Dessa junção de imagens colocamos no espaço vazio formas e corpos numa organização do espaço-tempo guiados pela canção Bombé. Ruhtwohl, ihr heiligen Gebeine, do audio Lambarena: Bach para Africa (1995).

Repetição.... Suspensão e Extensão da Ação.... Sobreposição.... Imagens que suscitam... Estímulos sonoros e visuais... Sensações...
Na função de direção do exercício, busquei compor o espaço e o tempo com as imagens de todos os participantes, numa construção visual do espaço, numa articulação LUZ-SOM-AÇÃO, onde a luz ensina a ver e a escutar e onde o ritmo é marcado com movimentos numerados conforme a duração do tempo sonoro, que se propaga na cena.
O resultado foram imagens provocadoras que podem vir a suscitar sensações, pois como afirma Bob Wilson (apud SALGADO, 2010):
“A verdadeira ação do meu teatro é a que passa no cérebro de meus espectadores (...). Eu lhes dou sinais impessoais, cada um inventa depois segundo sua imaginação. Deixa fluir em seu cérebro seus pensamentos que lhes são próprios. Não sugiro nada (...) para que saiam do adormecimento, para que sigam vendo em suas casas.”
Para ver e ouvir o exercício será necessário “tirar os óculos dramáticos”, utilizando aqui a expressão utilizada por Bulhões, para apreciação de obras que nos oferecem imagens, às vezes sem significação, e que dá ao espectador uma sensação de descontinuidade e que, dependendo dos óculos, pode vim a ser um exercício de sensibilidade.
Bibliografia:

ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed.. Petrópolis: Vozes: Brasília:INL,1976.
GALIZIA, Luiz Roberto. Processos Criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva, 1986.
SALGADO, Carmen Prado.  “Contrapontos de luz e som no teatro de Bob Wilson”. (palestra) In: DVD Ciclo Paralelo: Silêncios e Sussurros. Realização: Fundação Vera Sales Barcelos, em 11/09/2010.
SPOLIN, VIOLA. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1998.

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